Amazônia, narrativas e realidade.

Por Belisário Arce*

 

"A mentira e a verdade têm a mesma face".

Michel de Montaigne

 

 

            Belém sediou a Cúpula da Amazônia, que reuniu chefes de Estado de quatro países amazônicos e delegados dos demais membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica - OTCA. Foi a quarta vez que presidentes dos países amazônicos se reuniram desde a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica em 1978.

            O evento ficou longe do sucesso esperado pela diplomacia e pelo governo brasileiros. Fiasco comemorado pelas sociedades amazônicas, uma vez que as instâncias diplomáticas e políticas do poder central dos países amazônicos se posicionam antagonicamente aos anseios das populações amazônicas, as quais desejam, acima de tudo, o desenvolvimento econômico para a região.

            O discurso de que os governos nacionais teriam consultado a sociedade amazônica é uma falácia. Dar a palavra a alguns indígenas ou a ativistas de ONGs ambientalistas não é escutar a sociedade amazônica. Realizar um evento intitulado "diálogos amazônicos" para coletar os anseios da sociedade e levá-los à consideração das instâncias políticas mais elevadas é um engodo. Sem mencionar que se trata de processo precaríssimo de consulta. Na democracia representativa, quem se manifesta em nome do povo são seus representantes políticos eleitos. Mecanismos substitutivos podem não passar de um desvio democrático.

            Na Cúpula da Amazônia, não estavam presentes representantes dos governos sub-nacionais eleitos pelo povo. Tampouco, convidaram-se representantes dos setores produtivos, como as federações da indústria, do comércio e da agricultura, por exemplo. O governo chamou para ouvir somente quem sabia que não o contestaria. Só os amigos de ocasião.

            Ter deixado os setores produtivos de fora dos debates foi o maior erro. A Amazônia brasileira tem 29 milhões de habitantes, corresponde a quase 60% do território nacional, e faz do Brasil um país de dimensões continentais. A contribuição do empresariado da região é indispensável para os superávits na balança comercial, visto que três dos principais itens de exportação são produzidos em grande quantidade na Amazônia: ferro, soja e carne. Uma pujança que se consegue a despeito de toda a pressão contra as atividades produtivas.

            Tristemente, o modo como foi organizada a Cúpula da Amazônia e a dinâmica que ocorreu fizeram com que os debates fossem dominados por narrativas contrárias aos setores produtivos, como é o caso da estapafúrdia proposta da Colômbia de acabar com a exploração petrolífera na região.

            Com efeito, o texto resultante do encontro presidencial, a Declaração de Belém, não passa de um amontoado de narrativas desconectadas da realidade. Uma lástima.

            Se houver desejo genuíno, seja lá o motivo que for, de preservar a floresta amazônica, é imperioso que se faça um esforço de lucidez para  separar narrativa da realidade.

            Desde o descobrimento das Américas, a Amazônia esteve envolta em narrativas, as quais o passar do tempo comprovou serem falsas.

            O próprio descobrimento da Amazônia foi motivado por uma falsa narrativa, a do El Dorado. Foi a crença de que haveria uma cidade de ouro na selva que levou Francisco de Orellana a empreender a famosa expedição de 1542, que descobriu a região e a batizou com seu primeiro nome oficial Nueva Andaluzia. Mas, Amazônia foi o topônimo que vingou. Eis, portanto, o segundo embuste. A região chama-se Amazônia por causa de uma narrativa, a dos relatos do frei Gaspar de Carvajal, ao afirmar a existência das guerreiras amazonas (ou icamiabas) nessas terras.

            Mas, essas são as narrativas de um passado distante, as atuais é que preocupam.

            Desde os anos de 1970, sente-se contínua pressão dos países desenvolvidos contra o Brasil por causa da Amazônia. O Tratado de Cooperação Amazônica - TCA, firmado em 1978, inclusive foi uma tentativa sem sucesso da diplomacia brasileira de defletir o foco dessa pressão.

            A pressão persistiu, aumentou e passou a apoiar-se na construção de inúmeras falsas narrativas. Nos anos de 1980, a Amazônia era o pulmão do planeta. O que, por ser claramente absurdo, caiu em desuso.

            Da mesma época, é outra narrativa, a de que a Amazônia estava queimando, na qual se insiste até hoje.

            Com o tempo, as narrativas tentam ser mais sutis. A principal delas é a da sustentabilidade. Ora, para a Amazônia, o conceito de  sustentabilidade em nada contribuiu para melhorar a vida das pessoas que aqui vivem. Ademais, a agenda da sustentabilidade tem sido contraproducente ao impor obstáculos às atividades produtivas e assim corroborar para a persistência da inércia econômica e a continuidade da pobreza para a maioria da população da Amazônia. Nunca é demais repetir: a pobreza é a principal causa dos problemas sociais e da degradação ambiental.

            Outra narrativa muito usada é a de salvar o planeta para as próximas gerações. A repetição desse mantra, inevitavelmente, leva a pensar que o homem amazônico do passado tem valor, visto que grandes porções de terras e vantagens são dadas aos povos ancestrais; que o homem do futuro também tem valor, uma vez que ambientalistas justificam acabar com a exploração dos recursos naturais da Amazônia, agora, para deixar essas riquezas para as futuras gerações. Parece que apenas quem não tem valor nenhum é o homem do presente, as pessoas da atualidade a quem se nega o direito elementar de tirar seu sustento da abundância dos biomas amazônicos e do riquíssimo subsolo da região. Aprisiona-se, assim, o homem do presente à pobreza e nega-se a ele a esperança de uma vida melhor.

            A narrativa de preservar para as futuras gerações deixa-nos com uma pergunta incontornável: qual geração, então, terá o direito de explorar os recursos naturais, a dos nossos filhos, dos netos, dos bisnetos, qual? A narrativa não passa de um sofisma.

            O grande legado que uma geração deve deixar para a próxima não é uma floresta intocada, mas sim a prosperidade. É a afluência que permitirá a todos os amazônidas a consecução de um destino melhor e digno, tanto individual quanto coletivo.

            Outra narrativa muito em voga, uma das mais cruéis e imorais, é a dos "guardiões da floresta".

            O surgimento das cidades proporcionou o desenvolvimento das sociedades humanas em todos os aspectos. O mundo urbano permitiu ao homem aproveitar amplamente seus potenciais. Mas, muitas populações, em todo o mundo, permanecem ainda excluídas dos benefícios da urbanização, o que limita, inclusive, o acesso à plena cidadania. Uma enorme dívida social em muitos países.

            No caso da região amazônica, há milhares de pequenas comunidades isoladas, espalhadas pela floresta, nas margens dos rios, onde seres humanos vivem sem a mínima dignidade, sem acesso a nada. Não têm saúde, nem educação, nem segurança alimentar, nada. Mais triste, essa gente não tem esperança de mudar seu próprio destino.

            Mesmo assim, há quem defenda a permanência dessas populações em seu eterno estado de isolamento. Por exemplo, nos projetos de crédito de carbono florestal, é preciso garantir ao comprador dos créditos que a área de floresta na qual investiram seus recursos permanecerá intocada. O "mecanismo" proposto por ONGs que desenvolvem esses projetos é, justamente,  manter essas pessoas, já tão sofridas e espoliadas, nas comunidades isoladas como "guardiões da floresta". Propor isso é usar e abusar da miséria alheia.

            Para maquiar essa indecência com alguma moralidade, apresenta-se o indefensável discurso de que se está protegendo essas pessoas, pois se as mesmas fossem para a cidade correriam risco social, inchando as periferias urbanas, expondo-se a todo tipo de precariedade.

            Quem aceita esse argumento esquece que todos devem ter o direito de arriscar para prosperar.

            Além disso, na cidade, apesar de todas as dificuldades, há, ao menos, a esperança, algo impossível de se ter em situação de isolamento na floresta. Tanto é assim que não há ninguém que, tendo deixado sua comunidade na floresta e vindo para a cidade, decida retornar à vida de precariedade anterior.

            As ONGs tentam dissimular a dura verdade com pequenos investimentos em construção de escolhinhas (as quais, em geral, não têm professor), realizando projetos de geração de renda que nunca prosperam, entre outras inutilidades. Tudo para garantir que sempre haverá um contingente de servos para guardar os investimentos em "estoque de carbono". Querer reduzir a gente da Amazônia a "guardiões da floresta" é um acinte.

            Meu derradeiro comentário sobre as narrativas que afetam a sociedade e a economia na Amazônia é a respeito do aquecimento global.           O clamor mundial para a conservação da floresta advém, principalmente, da preocupação com as mudanças climáticas. Ora, a comunidade científica diverge quanto à hipótese da ação humana como causa do aquecimento global. Cientistas renomados, no mundo todo, contestam a versão amplamente difundida. Mas, sem adentrar nessa celeuma, cabe acautelarmo-nos com as agendas que querem nos impor os países ricos, principais responsáveis pelas emissões de CO2. Há muita hipocrisia, sintetizada magnificamente em uma frase do saudoso e grande Professor Samuel Benchimol: "parece que muitos dos países desenvolvidos se cansaram de dar maus exemplos para agora começar a dar bons conselhos".

            Mesmo se o aquecimento global fosse um fato, e mesmo se fosse causado pela ação humana, seria ínfima a participação da Amazônia nas emissões de CO2, uma vez que os grandes poluidores são as nações altamente industrializadas, com destaque para os Estados Unidos, China e os países europeus. Se houvesse vilões, seriam eles, não os amazônidas.

            O aquecimento global tornou-se um dogma, do qual não se pode duvidar, sob o risco de ser acusado de "negacionista". Ora, não há nada mais anti-científico do que não duvidar, do que não questionar. A base do método científico é o ceticismo cartesiano. Sem dúvida, não há ciência. Impedir o questionamento é matar a ciência.

            A verdade é que a Amazônia tem direito a usar parte do seu território em busca do desenvolvimento econômico, sem o qual, é inviável conservar a floresta ou  retirar a população da pobreza que aflige historicamente a região, especialmente os municípios do interior.

            É preciso encarar a realidade: o único meio de manter a floresta é a prosperidade. O exemplo concreto disso é o que ocorreu no estado do Amazonas. Até a década de 1960, a dinâmica econômica do Amazonas era muito similar à do Pará e dos demais estados da região. Mas, nos anos de 1970, tudo muda com a Zona Franca de Manaus, a qual esvaziou o interior do estado e concentrou a população e toda a atividade econômica na capital. Ou seja, a concentração produtiva, em especial da indústria, em uma única área urbana preservou a floresta integralmente. Com efeito, 97% da cobertura vegetal original permanece intocada no Amazonas, em contraste com outros estados nos quais as populações não tiveram alternativa econômica e, desse modo, pressionaram o bioma florestal.

            O papel da Zona Franca de Manaus na conservação da floresta é algo evidente, mas, mesmo assim, é bom citar um estudo publicado, recentemente, em Memorando do Banco Mundial, que apresenta a mesma conclusão de que o principal fator de conservação da floresta no Amazonas foi a concentração e o adensamento produtivo em Manaus. Nesse mesmo Memorando, intitulado "Equilíbrio delicado para Amazônia Legal brasileira”, o Banco Mundial afirma que incrementar a economia da região é vital para reduzir as pressões que levam ao desmatamento. Ademais, afirma o mesmo estudo, é imperioso aumentar a produtividade e competitividade na Amazônia. Para tanto, recomenda o Banco Mundial, deve-se, prioritariamente, investir em infraestrutura para reduzir os custos de transporte e aumentar a produtividade da Amazônia. O estudo estima que uma redução de 12,5% nos custos de transporte, aumentaria o PIB do Estado do Amazonas em 38%.

            Nesse sentido, é urgente facilitar investimentos privados e públicos em infraestrutura: portos, hidrovias, rodovias, ferrovias, comunicações, etc., o que é indispensável para aumentar a eficiência econômica. É medida prática que contribuiria, concretamente, para os nobres objetivos da proteção da floresta. Grave é insistir na tradicional abordagem conservacionista, a qual, apesar de décadas de aplicação, não tem sido capaz nem de cumprir seus objetivos específicos nem de tampouco contribuir para resgatar a região da pobreza.

            Ou seja, o Banco Mundial conclui o óbvio: que a prosperidade é o único meio de salvar a floresta.

            Hoje o maior risco para a floresta é a pressão dos países desenvolvidos, das ONGs e até dos próprios governos nacionais, em especial da Colômbia e do Brasil, de bloquear as atividades econômicas na Amazônia, o que condenaria eternamente as populações da região à extrema pobreza, colocando as pessoas em uma situação desesperadora, obrigando-as a recorrer à floresta para sua sobrevivência, causando assim mais destruição dos biomas. Seria um desastre completo.

            Coibir, controlar, cercear, punir os setores produtivos é um terrível erro que agrava a situação econômica, social e ambiental. É preciso, ao contrário, liberdade para investir e empreender na região. É imperioso que a Amazônia se aproxime da fronteira da produtividade.

            Se, ao invés de cerceamento, houvesse amplo apoio para explorar seus vastos potenciais econômicos, a Amazônia deixaria de ser vista como problema; tornar-se-ia solução.

            Os amazônidas que querem o melhor para a região, para seus filhos e para si mesmos devem repudiar narrativas enganosas. O que se deve almejar  é a normalização da vida econômica na região, com plena exploração dos recursos naturais já, para a atual geração, com absoluto respeito ao meio ambiente, mas com foco principal no desenvolvimento econômico.

*Belisário Arce é fundador e diretor executivo da Associação PanAmazônia.